Se sancionada, Lei das Cotas revolucionará regras de acesso à universidade
O discurso conservador condena o projeto aprovado pelo Senado. Os
movimentos sociais que lutam por uma política de cotas há 13 anos
afirmam que ele irá revolucionar o acesso da população pobre ao ensino
superior de qualidade. O senador Cristóvam Buarque e o presidente da
Andifes, Carlos Maneschy, fazem críticas pontuais, mas defendem as cotas
como ferramenta para valorização da escola pública e diminuição da
desigualdade.
Najla Passos
Brasília - Nos próximos dias, a
presidenta Dilma Rousseff terá a oportunidade de colocar um ponto final
na luta pela implantação de uma política nacional de cotas nas
universidades públicas federais que, há pelo menos 13 anos, consome os
movimentos sociais do país. Aprovado pelo Senado na última terça (7), a
chamada Lei das Cotas combina critérios étnicos e sociais, com o
propósito central de valorizar a escola pública e, consequentemente, os
milhões de cidadãos que têm nela a sua única opção de formação.
A
divisão das vagas é complexa. A política aprovada prevê a reserva de
50% delas para as cotas. Metade, ou 25% do total, é distribuída entre
negros e índios, de acordo com o perfil étnico de cada região, definido
pelo censo do IBGE. Os outros 25% são destinados aos alunos das escolas
públicas, sendo 12,5% para os estudantes com renda familiar inferior a
1,5 salário mínimo.
“Esta política permite que o sonho do
brasileiro pobre de formar o filho doutor se torne realidade. E o
melhor, com uma formação de qualidade que, até pouco tempo, era
reservada apenas para os filhos da elite. Além disso, cria uma fé na
escola pública. E isso é importantíssimo porque nove em cada dez
estudantes do ensino médio estão nas escolas públicas”, afirma Sérgio
Custódio, coordenador do Movimento dos Sem Universidade (MSU), criado
por professores de cursinhos comunitários e um dos principais
articuladores do projeto.
“O principal mérito do projeto é
colocar a escola pública no centro do acesso ao ensino superior de
qualidade. É valorizar a escola pública e dar aos milhões de jovens que
estudam nelas a oportunidade real de ter acesso à universidade”,
complementa Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à
Educação, que articula mais de 200 entidades, incluindo movimentos
sociais, sindicatos, ONGs, fundações, grupos universitários, estudantis,
juvenis e comunitários.
Campanha conservadora
A
expectativa em relação à postura de Dilma é grande, mas tudo indica que o
desfecho será favorável. Ministério da Educação (MEC), Secretária de
Direitos Humanos (SDH) e Secretária de Promoção da Igualdade Racial
(Seppir) aprovam a lei. O que preocupa os idealizadores é que a campanha
conservadora contra as cotas segue forte na mídia. Esta semana,
editorias e artigos sustentaram teses há muito já superadas de que o
Brasil é uma democracia racial e de que as ações afirmativas aprofundam
as discrepâncias sociais. “A presidenta Dilma é mais suscetível ao
discurso da mídia do que seu antecessor, o ex-presidente Lula. Mas, pelo
menos neste caso, acreditamos que ela não vai se render”, avalia Cara.
De
acordo com ele, qualquer mudança proposta pelos movimentos sociais na
área de educação é amplamente atacada pela mídia. “Educação mexe com o
status quo, é questão emancipatória. No caso da luta pelos 10% do PIB
para a Educação, a batalha é grande, porque isso mexe com a prioridade
orçamentária do país. E a imprensa representa exatamente as 200 famílias
proprietárias da dívida interna brasileira, que não querem perder
percentuais para a educação”, ataca.
No caso das cotas, ele
acredita que a condenação intransigente reflete a defesa da elitização
da universidade. “É um pouco de desespero da elite, porque o que está em
jogo são as vagas dos seus filhos”, compara. Sérgio Custódio também
atribui às críticas conservadoras ao ranço da elite patrimonialista
brasileira. “É preciso acabar com esta concepção de que os bens públicos
servem a eles. Inclusive as universidades. O Brasil está crescendo e
precisa de milhões de profissionais bem formados para alavancarem este
crescimento”, argumenta.
Efeito Demóstenes
Há também
uma espécie de trauma em relação à articulação das forças conservadoras
durante o processo de tramitação do projeto. “Em 2008, para aprovar o
projeto na Câmara, nós conseguimos fechar um acordo com todos os
partidos políticos. Entretanto, depois que o projeto seguiu para o
Senado, apareceu o ovo da serpente: o ex-senador Demóstenes Torres
(DEM-GO), que descumpriu o acertado e reatualizou o discurso racista no
país”, relembra Custódio.
Segundo ele, o ex-senador, que teve
seu mandato cassado em função do seu envolvimento com a organização
criminosa chefiada por Carlinhos Cachoeira, capitaneou o discurso das
elites, prejudicando a aprovação do projeto, naquele momento tida como
consensual. “Hoje, tenta-se vender o Demóstenes apenas como caso de
polícia, mas ele desempenhou um papel muito mais nocivo para o país. Ele
criou uma frente ideológica, fundou movimentos sociais dentro do seu
gabinete, como o dos pardos e dos caboclos brasileiros”, argumenta o
militante.
Daniel acrescenta que, com a cassação do mandato
dele, esse tipo de discurso perdeu força no parlamento. Apenas o
senador Aloysio Nunes (PSDB-SP) repetiu a cantilena na votação da última
terça. “Até mesmo a oposição brincava que Nunes estava mais preocupado
com os editoriais dos jornais do que com a justiça social”, relatou.
Problema consensual
Do
ponto de vista do campo popular, uma das poucas críticas ao projeto é
determinar que o critério de acesso sejam as notas obtidas nas escolas, e
não em avaliações mais gerais como o ENEN ou os vestibulares. Mas,
antes do Senado aprová-lo, o senador Paulo Paim (PT-RS) negociou o veto
ao artigo pela presidenta.
“A nota escolar não pode ser
critério de acesso. Seria o caos. Vai ter professor sequestrado para
garantir o ingresso de aluno em universidade”, aponta o senador
Cristovam Buarque (PDT-DF), entusiasta histórico do projeto, mas que não
gostou nada da forma como ele foi aprovado. “Acho constrangedor o
Senado aprovar uma lei, esperando o veto presidencial de parte dela. Não
acho que este seja um arranjo republicano”, criticou.
Para o
senador, que já foi reitor da Universidade de Brasília (UnB) e é
considerado um dos maiores especialistas da casa em Educação, a proposta
precisava ser melhor amadurecida no Congresso. “Não é nada contra o
mérito da proposta, que acredito ser muito positiva. Mas tem aspectos
que precisam ser mais debatidos. O limitador de renda, por exemplo, vai
impedir que a classe média volte a colocar seus filhos na escola pública
para que tenham melhores chances de entrar numa universidade. E seria
ótimo que isso ocorresse, porque a escola seria pressionada a melhorar
em qualidade”, argumenta.
O presidente do MSU discorda. Segundo
ele, o limitador só vale para parte das vagas. Portanto, defende que a
essência do projeto ainda é a valorização da escola pública. Em relação à
negociação para o veto, afirma que foi a melhor solução. “Foi um erro
que veio da proposta aprovada lá na Câmara. Se o Senado alterasse, o
projeto teria que voltar a tramitar entre os deputados e poderia levar
mais 13 anos para ser aprovado. Não podemos minimizar a capacidade das
forças conservadores se reaglutinarem”, opina.
Cara acrescenta
que tanto o limitador de renda quanto à avaliação pelas notas escolares
foram frutos da negociação com a oposição para que o projeto fosse
aprovado, desde 2008. Entretanto, avalia que o limitador de renda não
será relevante para tirar o foco da escola pública. “Este é um critério
que pode mudar ao longo dos dez anos em que a proposta vigorar.
E se
mudar, melhor: será a comprovação de que a renda média do brasileiro
subiu”, esclarece. Quanto às notas escolares, também defende que o
problema será corrigido, de forma prática, com o veto presidencial.
Autonomia universitária
A
outra crítica relevante ao projeto parte da Associação Nacional dos
Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). Mas
também não tem a ver com o mérito da proposta. Os reitores defendem
posição histórica de que a forma de acesso às universidades deve ser
discutida por cada instituição, obedecendo às demandas regionais. Porém,
o presidente da entidade, Carlos Maneschy, ressalta que o tema ainda
não foi retomado pelo pleno de reitores, após a aprovação do projeto.
“Nossa prioridade tem sido encontrar uma solução para o problema da
greve das universidades”, justifica.
Critovam Buarque discorda.
“A universidade tem que ser autônoma, mas não autista. Essa autonomia
tem que estar limitada às regras definidas pelo interesse público. É
preciso que existam mecanismos capazes de impedir, por exemplo, que uma
instituição decida que filhos de senadores terão prioridades de acesso”,
argumenta. Daniel Cara também contesta a posição da Andifes. “Os
reitores participaram da discussão deste projeto desde o início. Agora,
precisam compreender que a posição deles foi vencida. Isso é acatar o
jogo democrático”, avalia.
Maneschy insiste que a crítica não é
ao mérito da política de cotas, mas à forma como será imposta as
instituições. E ressalta que, ao contrário do que a mídia faz parecer, a
Andifes compreende a importância das ações afirmativas e é favorável às
cotas. Como exemplo, cita a política implantada há cinco anos pela
Universidade federal do Pará (UFPA), instituição da qual é reitor. “É
muito parecida com a prevista pelo projeto, porque reserva metade das
vagas para alunos egressos da escola pública, sendo 40% delas para
negros”, explicita.
E o reitor ainda defende os resultados já
aferidas. “Como estamos formando as primeiras turmas agora, não tivemos
como medir o desempenho dos nossos alunos cotistas no mercado de
trabalho. Mas na vida acadêmica, tem sido muito equilibrado entre
cotistas e não cotistas. A média das notas dos cotistas é até um pouco
maior. E o nível de evasão escolar ficou abaixo do dos não cositas,
principalmente porque implantamos uma política de permanência”, afirma.
(Extraído do site Carta Maior, em 11/08/12)